Fernão Mendes Pinto - este é nome de um homem que, fascinado pelos mistérios do Oriente, se fez ao caminho passando por inúmeras aventuras e desventuras. Ele foi, muito provavelmente, o primeiro backpacker Português no Oriente.
Conheçam um pouco da sua história através deste artigo publicado na revista Rotas e Destinos (Fevereiro de 2004).
« Empurrado pela necessidade e pelo destino, Fernão Mendes Pinto acaba por passar cerca de 21 anos no Oriente. Por mar, por terra e, sobretudo, pelas linhas da sua obra, traçou um caminho que até hoje ainda não foi possível confirmar. A viagem de um aventureiro lusitano...
A sua história começa como muitas outras: a vida está difícil, Fernão vai da sua terra natal de Montemor-o-Velho para Lisboa, trabalhando aí em casa de uma família fidalga. Sem razão conhecida, entende que a sua vida corre perigo e decide fugir numa caravela que vai para Setúbal, mas um corsário francês ataca-a e os tripulantes são abandonados na praia de Melides. Acaba por conseguir chegar a Setúbal, onde fica em casa de um outro fidalgo, desta vez durante cinco anos, até que decide que "a moradia que então era costume dar-se na casa dos príncipes" não lhe bastava para sua "sustentação". Correria o ano de 1537, e já seriam conhecidas muitas histórias de sucesso de aventureiros que tentavam a sua sorte nas Índias e chegariam ricos, ideia sedutora para um jovem entre os 22 e os 27 anos.
E ei-lo que parte para a ilha portuguesa de Diu, na costa indiana, onde apenas ficou 17 dias, continuando depois a navegação pelo Mar Vermelho e entrando a seguir num corrupio de lugares e aventuras que lhe valeram a alcunha de "Fernão, Mentes? Minto". A acreditar em tudo o que nos conta, Fernão teria sido "treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Etiópia, Arábia Félix, China, Tartária, Massacar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia". Entre outros lugares difíceis de situar, como o "Calaminhão", poderíamos mencionar ainda, com os nomes actualizados, Iémen, Malásia, Singapura, Tailândia, Japão, Vietname, Indonésia, Camboja, Mongólia e Myanmar (antiga Birmânia). Goa e Malaca, os lugares portugueses onde mais se alongou, são quase esquecidos nas (raras) descrições que faz; a sua obra é uma pura narrativa de viagens e acontecimentos, sem intenção de passar informação histórico-geográfica ao leitor, sobre os lugares onde esteve. Apesar disso, e apesar também de ser voz corrente que parte dos acontecimentos ter-lhe-ia sido contada por outros aventureiros que ia encontrando, a verdade é que, à data da publicação, o seu livro foi uma das primeiras referências globais ao Extremo Oriente, tendo sido traduzido para Castelhano, Francês, Alemão, Flamengo e Inglês.
Nem a riqueza e a diversidade cultural da Índia, subcontinente vasto onde os portugueses negociaram e se estabeleceram durante tanto tempo, lhe merece um pouco mais de atenção. Como seria Goa à época, quando vemos que ainda hoje tantos bairros, igrejas e capelas continuam de pé, funcionando agora como atracções turísticas para os próprios indianos? Há marcas portuguesas em Damão, Diu, Cochim e Calecut, mas Goa chegou a rivalizar com Lisboa no luxo e no bem-estar dos representantes da coroa e do clero português, aparecendo na "Peregrinação" como "a milhor coisa que temos na Índia".
A integração do território numa União Indiana já independente fez-se em 1961, mas as marcas arquitectónicas, gastronómicas e uma certa manutenção da língua portuguesa entre os cristãos faz da zona um caso raro na Ásia. Malaca, por exemplo, tomada pelos holandeses em 1641, foi arrasada, e poucas marcas ficaram da ocupação portuguesa para além da igreja de S. Paulo e da Porta de Santiago, uma das entradas da antiga fortaleza. Hoje é impossível imaginar como seria esta cidade da Malásia, ou mesmo outros pontos da costa por onde os portugueses andaram. Fernão Mendes Pinto mostra-se mais preocupado com o tempo, dizendo que "as chuvas eram contínuas por causa do clima e a terra em si era brejosa e alagadiça", e com a perigosa fauna selvagem, sobretudo os "lagartos" dos rios, "com as bocas de mais de dous palmos", que atacavam e levavam "três quatro negros" e "os engoliam inteiros". A posterior fixação de indianos, que convivem agora com os locais e com os chineses, que nunca pararam de chegar, traz uma nota marcante ao país que o tornam definitivamente diferente da Malásia que Fernão conheceu.
Entre a Malásia e o Sião, as fronteiras variavam constantemente devido a guerras entre os vários reinos locais. A capital do que é hoje o reino da Tailândia, "um dos milhores reinos que há em todo o mundo", era então a histórica Odiá, hoje Ayuthaya, onde ainda podemos visitar as ruínas de dezenas de templos, entretanto destruídos por exércitos vindos de territórios a Norte, onde fica a actual União de Myanmar (Birmânia). Em relação ao Sião, talvez mais do que em relação a qualquer outro reino, Fernão mostra bem a sua visão de "emigrante quinhentista" com uma apreciação prática e economicista, comentando sobre os fabulosos templos budistas tailandeses, os seus "ídolos mui grandes e mui cheos de ouro" e as florestas de madeiras preciosas, ao ponto de calcular a quantidade de metal e pedras preciosas utilizados e a facilidade com que poderíamos arrebatar-lhes toda aquela riqueza, uma vez que se trata de "gente muito fraca, não costumam ter armas defensivas"!
Claro que a noção de turismo que hoje leva milhares de europeus à Tailândia era coisa inexistente na época, pelo menos em relação a um continente tão desconhecido e cheio de riscos. Só no último século é que as suas paisagens paradisíacas, o seu povo gentil e as suas praias de mar azul-turquesa se tornaram num motivo de visita, agora já sem riscos, uma vez que a "muita soma de tigres e cobras, e outras muitas maneiras de animais silvestres" se encontram restritas a pequenas áreas protegidas. Até os famosos elefantes do exército dos reis do Sião, nas presas dos quais muitos inimigos perdiam a vida, são agora cada vez menos utilizados nos trabalhos rurais.
Fernão fez de tudo um pouco, desde ser soldado das esquadras d'el-rei, homem de mão de capitães mais ou menos "piratas", até recolher informações sobre o real poderio de soberanos locais e sítios ainda desconhecidos, de onde traz "costa, portos e rios (...) por graduação, arrumados em suas alturas, com seus nomes e medição dos fundos". Mas ao contar-nos as suas aventuras não esconde também as desventuras, aproximando-se do herói pícaro quando exibe as suas misérias sem nunca se levar muito a sério. Como, por exemplo, quando pede misericórdia ao rei de Quedá, algures na costa malaica, ao ver que este tinha mandado serrar "vivos pelos pés, pelas mãos e pelos pescoços, e por derradeiro pelos peitos até ao fio do lombo" alguns locais e também um mouro que viajava consigo. Ou quando é preso na China com os seus colegas de infortúnio, depois de um naufrágio, por andar a mendigar. Segundo nos conta, chega mesmo a ser obrigado a trabalhos forçados na Grande Muralha, "trezentas e quinze léguas" de muro que separa a China da Tartária, "na qual obra dizem que trabalharam contínuo setecentos e cinquenta mil homens", "durante vinte e sete anos".
Apesar de a sua viagem se desenrolar tanto por mar como por terra e o trajecto ser impossível de seguir passo a passo, um dos territórios que melhor conheceu e apreciou foi este, o do império chinês, de "grandíssima ordem e maravilhoso governo". O ambiente das grandes cidades chinesas, como Pequim, "metrópoli com razão e com verdade, de todas as do mundo, na grandeza, na polícia, na abastança, na riqueza e em tudo mais quanto se pode dizer ou cuidar" mantém aspectos parecidos com os actuais, como os bairros e mercados fervilhando de compradores e vendedores que oferecem de tudo um pouco, de cobras a objectos de uso doméstico, sedas e especiarias, ou como as multidões de gente nas ruas que, tal como verifica o nosso viajante, "se não fosse a grande ordem e governo...sem dúvida se comeria uma com a outra".
A Cidade Imperial de Pequim é agora um museu desabitado, mas na altura era a residência do Imperador, nunca visto pela população mas servido por "cem mil homens capados, e trinta mil mulheres, e doze mil homens da guarda". O mais curioso é o ambiente de grande justiça social que este senhor todo-poderoso proporciona ao seu povo, provendo trabalho para todos e subsídios para "aleijados e gente desamparada", justiça gratuita e lares para idosos a todos os que já não podem trabalhar, incluindo prostitutas. Apesar de um interior ainda selvagem, onde abundam os tigres e "gente muito rústica e agreste", Fernão diz-nos que este imperador exemplar se preocupa em "prover o seu Reino de mantimentos para que a gente pobre não padeça necessidades"...
A viagem apresenta-se como um verdadeiro novelo de percursos, com vários regressos a Goa e a Malaca. Pelo caminho ficam histórias extraordinárias de encontros com piratas, naufrágios, guerras entre reinos locais. Um dos territórios que mais aparece marcado pela violenta luta pelo poder é Myanmar, onde as lutas entre os reinos de Pegu, Bramaa e os vizinhos do Sião são marcadas por morticínios sangrentos e requintes de crueldade difíceis de imaginar quando se viaja hoje por aí, e nos confrontamos com povos extremamente pacíficos e de uma afabilidade comovente. A abundância de templos dourados e Budas reclinados, a que o escritor chama "deos do dormir", mostram-nos agora uma cultura muito marcada pelo budismo, que também está presente na Cochinchina (Laos, Camboja e Vietname). Nesta área, a viagem é realmente muito difícil de seguir, mas um dos locais onde se sabe ter havido comércio com os portugueses é a pequena cidade de Hoi An, no Vietname; do reino Champa de que nos fala sobram apenas umas torres da época, e pouco mais.
As paisagens, essas, são de uma beleza fantástica, e a abundância de culturas já é de relevo na época, aparecendo descritas como "campinas rasas e grandíssimas de trigos, arrozes, cevadas, milhos e muitos legumes de muitas maneiras" que, por vezes, descem em socalcos até ao mar. Ainda há juncos no golfo de Tonquim, e agora alguns dedicam-se mesmo a passear turistas na baía de Halong.
Fernão Mendes Pinto regressa a Portugal em 1557 e dedica-se à sua obra, "Peregrinação", na sua quinta perto de Almada. A tença que pediu, como recompensa pelos serviços à coroa prestados no Oriente, só lhe chegou em 1583 ... o ano da sua morte. Fica-nos o retrato parcial do continente asiático no século XVI, visto por um europeu, e a obra memorável de um dos muitos aventureiros que o país produziu na época. Aliás, o espanto de encontrar gente tão longe da sua terra leva mesmo "El-Rei dos Tártaros" a questionar-se, intrigado, sobre as razões que ali trazem os portugueses. E o seu parecer é o de que "conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria dá claramente a entender que deve de haver entre eles muita cobiça e pouca justiça"... »
in Rotas e Destinos, Fevereiro de 2004
http://www.rotas.xl.pt/0204/300.shtml
Regresso a casa
Há 14 anos
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